segunda-feira, 9 de novembro de 2009

(cont.2) Cap. I - um estranho no ninho de Alice

Talvez uma das melhores coisas em viajar era sentir saudades de casa. No meio de grilos, mato e leite de vaca sentiam uma saudade imensa do trânsito, dos bares decadentes e modernos. O interior nem era tão pobre de civilização, é verdade, mas a fazenda dos pais de Alice ficava em uma localização nem um pouco favorável para quem gostava de respirar fumaça.

Rodrigo e Alice foram dar um passeio de carro, os dois estavam completamente esgotados do silêncio pacato. Alice ligou para Tom, seu único e verdadeiro amigo daquela área. Tom era uma das pessoas mais inteligentes que ela já tinha conhecido e ninguém, ninguém mesmo, cogitava a possibilidade de após o colégio Tom permanecer ali. Ele e Alice sonhavam em dividir um apartamento, faziam planos da liberdade e da loucura diária que teriam. O sonho de Tom foi arrancado pela raíz quando há 5 anos seu pai morreu em um acidente de carro. Tom estava na varanda de sua fazenda, que era alta, e viu a explosão do acidente do próprio pai acontecer a poucas quadras de sua casa. Resolveu, portanto, que cuidaria de sua família, sua herança e o sonho de Tom a partir daquele dia mudou. Alice sentia uma estranha culpa em ter seguido sem Tom. É claro que ela jamais deixaria de ir, por motivo algum, mas saber que estava vivendo a vida que Tom queria a deixava com peso na consciência. Combinaram de se encontrar em um boteco - que também era mercadinho, padaria e farmácia. Alice e Rodrigo chegaram mais cedo, sentaram numa mesa de esquina e conversavam sobre o prefeito. Alice contava que a primeira dama tinha um caso com o entregador de cargas daquele boteco há anos, Rodrigo se divertia em saber os escândalos que já haviam ocorrido, quando de repente Alice parou de contar, seus olhos brilharam demais - talvez estivessem cheios de lágrimas - e ela só conseguiu dizer "Tom!", antes de correr e pular no pescoço dele. Tom e Alice se abraçaram forte, ela conseguia sentir a respiração ofegante dele, como se fosse dela. "Rodrigo, esse é o homem mais bonito e inteligente que eu podia te apresentar nessa cidadezinha medíocre" "Ok, mas eu prefiro mulheres, certo?" "Não se preocupa, Rodrigo, você também não faz o meu tipo" os três riam. Tom e Rodrigo já tinha ouvido falar um do outro, Alice falava compulsivamente na mesa e os dois, maliciosamente, faziam comentários debochados e sarcásticos. Conversavam sobre música, livros, filmes, fofocavam sobre pessoas caricatas. A bebida entrava como o ar, copos e mais copos iam sendo virados, enquanto a madrugava entrava e os segredos saíam.
"Nunca beijei o Vitor, Tom! Deixa de contar mentira" "Beijou sim, Alice! Conta outra, vai! Vocês ficaram até de casinho que eu sei!" "Pronto, olha aí uma prova! Você sempre sabe dos meus casinhos, eu nunca cheguei pra você e falei do Vitor, porque simplesmente nunca aconteceu" "Ok, vou deixar esse assunto pra lá. Mas falando nos seus casinhos, algum pobre coitado na sua rede?" "Os homens estão para mim como a civilização está para essa cidade, Tom! Nada em vista" "Jura? Pensei que você tava se aproveitando dessa idiota, Rodrigo" "Ela que se aproveita de mim, Tom!" Tom falou algo deixando entender que duvidava e disse que iria comprar cigarros, já voltava. Rodrigo mudou o timbre da voz, como quem perguntava o que não devia "Alice... você e o Tom, vocês já...?" "Já o quê?" ela gargalhava, deixando Rodrigo cada vez mais sem jeito "Alice, é sério.. acho que ele gosta de você, hein" "Você tá com ciúme, Rodrigo" "Não, não estou - e realmente não estava. Rodrigo gostava de Alice, mas não a ponto de sentir ciúmes, desejá-la o tempo inteiro, ele não amava Alice- só queria saber se você e ele já tiveram algo". Alice se ajeitou na cadeira, tomou mais um gole, respirou fundo : "Bem, eu não gosto muito de falar disso, me sinto como se tivesse feito algo errado. Há uns anos, estávamos terminando o colégio, eu e Tom já éramos unha e carne. Um dia, do nada, eu o puxei e beijei. A gente tava bebendo uma garrafa de vodka - ela riu, olhou pra baixo- ele me disse que eu era como uma irmã pra ele. E eu disse que o amava como homem. Passei dias tentando convencê-lo de que deveríamos ficar juntos, que ele também me amava. Até que ele concordou" Rodrigo esperava mais, mas Alice parou ali, como quem já tinha falado demais "E...? O que aconteceu?" "Bem, o Tom é incrível, você deve ter notado. Quando ele disse que sim, que me queria também, senti como se tivesse ganho um troféu, uma medalha. Tinha conseguido conquistar o cara mais legal que eu conhecia. Me senti satisfeita, acho que no fundo só queria provar que eu, uma repleta idiota, podia fazer um cara tão especial ficar louco por mim. E eu já não via mais muita graça em estar com ele...Foi quando o pai dele morreu e eu me mudei. O Tom é tão generoso que nunca me cobrou uma explicação. Ele apenas disse 'Alice, seu lugar não é aqui. Não é de mim que você precisa, eu sei'. Fui muito ruim com ele, Rodrigo" Rodrigo viu que a bebida tinha deixado Alice completamente fragilizada e que tocar naquele assunto estava fazendo ela se mostrar de um jeito que ele não conhecia, ele se aproximou, alisou a ponta dos cabelos dela com os dedos, a beijou. "Não fica triste, a vida nos leva a lugares que a gente não imagina. Não se sinta culpada" Alice o beijou com força, pressionou a boca dela contra a dele, quase o machucando "Vamos sair daqui, vamos ficar sozinhos" "E o Tom? Ele vai voltar, não vai encontrar a gente" "Tom não vai voltar, Rodrigo" "Ele disse que voltava logo" "Tom não vai voltar, ele me conhece, ele não vai voltar". Alice e Rodrigo entraram dentro do carro, Rodrigo queria dirigir, pois se julgava em melhor condição, mas Alice disse que queria levá-lo a um lugar. Chegaram no território da fazenda, mas Alice passou direto da entrada principal, subiu com o carro numa íngreme estradinha de barro, a poeira subia e a visão era péssima. Parou o carro, abriu a porta rápido e desceu correndo. Rodrigo foi atrás, Alice parou em um determinado ponto "Essa é a parte mais alta da fazenda, é onde eu me sinto rainha desse reino de loucos" Rodrigo abraçou sua cintura "Tem mais outra coisa, Rodrigo. Aquele Vitor que o Tom falou na mesa, eu fiquei mesmo com ele. Inclusive fiquei aqui, exatamente aqui onde estou com você" "Então é aqui que você traz suas vítimas?" Rodrigo sentou e puxou Alice pra junto dele, abriu sua blusa "Você não é vítima, você é excessão. Minha excessão"

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